25 de out. de 2020

O plano da pandemia que nunca existiu - The Intercept Brasil

da Newsletter d'The Intercept Brasil

por Tatiana Dias
Editora Sênior

Hélio Rodak é um leitor do Intercept. Em maio deste ano, ele procurou o sistema de acesso à informação do governo federal com um pedido simples: uma cópia do plano nacional para tratar os efeitos sanitários e econômicos da pandemia de covid-19. Começava naquele dia uma saga que se estendeu pelos quatro meses seguintes, até culminar com o governo pego na mentira. 

Agora, Rodak resolveu dividir o que descobriu com a gente. Seu pedido foi feito, primeiro, à Presidência da República; de lá, foi direcionado à Casa Civil. A primeira resposta do governo Bolsonaro veio no dia 8 de junho: algumas das informações que Rodak pediu seriam "documentos preparatórios". Assim, não poderiam ser fornecidos – naquele momento, a pandemia já havia matado quase 40 mil brasileiros. A Casa Civil argumentou que seria preciso aguardar a "edição do ato decisório" para que as informações pudessem ser disponibilizadas "devido ao risco de frustrar a própria finalidade em caso de divulgação antecipada". A resposta ainda incluiu alguns links com ações isoladas e uma notícia sobre a apresentação do programa Pró-Brasil, uma iniciativa "proativa" do governo para reduzir os impactos com foco no período pós-pandemia. 

Se você não sabe o que é essa iniciativa "proativa" (adoro gente que se autointitula proativa, como se não fosse mais do que a obrigação do governo pensar em soluções para a população diante da tragédia humanitária que estamos enfrentando), te convido a dar uma olhada no PDF tosco que apresentou a iniciativa. Nenhum detalhe, nenhum planejamento, nada, né? Pois é. 

Rodak também não se satisfez e recorreu da primeira negativa no dia 15 de junho. A resposta veio uma semana depois: negado. Mais uma vez, o governo Bolsonaro empilhou links de iniciativas isoladas do comitê de crise e mencionou o proativo Pró-Brasil. Nada do plano nacional. Rodak insistiu. "Aquilo que me foi apresentado não se trata de um plano, mas de uma página de divulgação das ações já realizadas pelo governo", ele justificou ao entrar com o recurso na segunda instância. 

Uma semana depois veio a nova negativa: "a documentação a que se pretende acesso possui restrição especial, de caráter temporário", justificou a Casa Civil. "Nesse momento é muito importante zelar pela segurança jurídica e pela confiança dos administrados. Assim, a restrição temporária se dá em harmonia com os interesses públicos do Estado em prol de toda a sociedade, como a segurança pública, a celeridade e a economicidade da administração pública", disse o governo. Enquanto isso, o Brasil acumulava quase 60 mil mortes. A resposta ainda aproveitou para empilhar mais links e mencionar, pela terceira vez, o Pró-Brasil, o PDF proativo do governo. 

Rodak, então, recorreu de novo – e, como determina a Lei de Acesso à Informação, a partir desta linha quem arbitra é a Ouvidoria-Geral da União, ligada à Controladoria-Geral da União. Nosso leitor argumentou o que parece óbvio: àquela altura, o Brasil já era o segundo país do mundo com mais mortes pelo novo coronavírus. Qual era a justificativa para que o tal plano continuasse sigiloso? 

A resposta veio desta vez, no dia 3 de setembro: o recurso não poderia ser atendido porque… a informação não existe. "Em que pese as justificativas outrora formuladas, cumpre elucidar que não há especificamente um 'plano nacional utilizado para tratamento dos efeitos econômicos e sanitários causados pela pandemia' para que dele seja fornecida cópia", respondeu o governo. Foi só na última instância que o leitor soube, e agora todos sabemos, que simplesmente não há um plano nacional para tratar os efeitos sanitários e econômicos da pandemia de covid-19. 

Trocando em miúdos: apesar de ter negado e tentado enrolar, admitiu, por fim, que a informação que o nosso leitor queria – e todos nós – simplesmente não existe. 

O governo afirmou que a crise é tratada por "estruturas temporárias e dinâmicas" criadas especificamente para esse fim. Também explicou que cada ministério tem suas próprias ações e programas para lidar com a pandemia – e que, se quisesse, Rodak teria de pedir a cada uma das áreas do governo os planos específicos. Articulação central? Planejamento? Nada.

A própria ouvidoria entendeu que o governo modificou seu argumento ao longo das respostas: primeiro disse que o plano estava em "documentos preparatórios" e depois falou em "restrição especial" até que, enquadrado, assumiu que eles não existem. 

Não por acaso, o governo Bolsonaro já é recordista de negativas de acesso à informação: só pouco mais da metade dos pedidos é atendida. É o pior índice desde 2012, quando a lei entrou em vigor. Mas o nosso leitor, que não é jornalista, insistiu e pegou o governo menos transparente da história recente do país no pulo – e achamos que vocês fossem gostar de saber disso. 

O Brasil já tem 152 mil mortes por covid-19 e está no quarto lugar no ranking de óbitos proporcionais à população, atrás apenas de Bolívia, Bélgica e Peru. A economia também deve retroceder 5,8% em 2020 – e o Brasil ainda bateu o recorde de desemprego, 13,8%, maior número desde o início da série histórica em 2012. Bolsonaro não salvou vidas e nem empregos. Agora vocês já sabem: o plano para isso nunca existiu.

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4 de mai. de 2020

Saudades das coisas de antigamente


Nesse período de distanciamento, isolamento social, confinamento ou do que quiserem chamar, em determinado momento me vi obrigado a sequer olhar pela janela.

Foi um período tenso. Além dos protocolos que tive que seguir por estar com suspeita de ter contraído Covid-19, logo no início da chegada da doença por essas bandas, ficando em casa obrigatoriamente por duas semanas, a energia do meu filho de 3 anos e a suspeita que minha esposa tinha de que ela também estava infectada me deixaram cansado física e psicologicamente.

Briguei com quem não devia. Mandei quem não merecia ir catar coquinhos (não posso escrever o que realmente disse devido o alcance desse texto, rsrs). Não saber o que realmente se tem por falta de testes é o pior sintoma dessa doença.

Passou o período, pra mim, mais tenebroso antes da minha mãe adoecer após de ter descumprido o isolamento. A neura voltou mas, em alguns dias, passou novamente. 

Voltei a normalidade.

Dentro dessa normalidade me dei conta do quanto anormal estão as coisas lá fora. E digo anormal em tudo. Era superministro pedindo demissão. Ministro da saúde sendo demitido em meio ao caos. Presidente participando de manifestação de pessoas que pedem a volta do regime ditatorial militar e o pior: após denúncias do “herói da lava-jato” contra o presidente, pessoas ainda apoiando o tal mito. 

Realmente, não podia deixar de registrar o quanto eu acho que tudo está estranho lá fora.

E de tanto pensar, me deparei hoje com uma vontade imensa de lembrar de como as coisas de antigamente eram boas (dentro das possibilidades).
Apesar da infância pobre e da adolescência suprimida pela necessidade de trabalhar, eu percebi que havia coisas boas pra se viver.

Mas as saudades eram mais fortes das coisas pequenas.

Saudades de brincar na rua até a madrugada, correndo por vielas, me escondendo em buracos e casas abandonadas. E de brincar nas ruas durante o dia, num bairro que não tinha calçamento e onde podíamos jogar bola descalços, jogar pião, tampinha cross, bolas de fone (de gude), conversar com adultos, com crianças, com animais.

Saudades de ter frutas nas árvores nas ruas a nossa disposição. Mangas, jambos, pitombas, siriguelas, bananas, goiabas eram mato.

Saudades de levar bronca da nossa mãe e da mãe dos nossos amigos sem que isso levasse a uma discussão entre elas. Fazia parte da nossa educação. Eramos como uma grande família. E todo mundo respeitava todo mundo. Bem! Quase todo mundo.

Saudade de soltar pipa feita em casa. De pegar o carrinho de rolimã dos amigos. De descer ladeira rolando em pneus de trator.

Saudades de namorar. De ir pra casa das namoradas a pé, de ônibus, de bicicleta, sem vergonha por não chegar de carro na casa delas.

Saudades de jogar bola na quadra da escola. De ser escanteado no time da sua turma e virar o goleiro titular do time da turma dois anos mais nova.

Saudades de trocar o lado da chinela ou consertá-la com prego e usar até realmente não dar mais.

Saudades de ouvir ensinamentos dos mais velhos e acreditar que, por ter bastante idade, eles realmente sabiam de tudo.

Saudades de tomar vinho com amigos. De ser revistado pela PM só por ter cara de e se vestir como pobre (não eram opção) e depois poder contar isso como mais uma experiência vivida por um membro da periferia nos grupos de discussão política.

Mas, do que mais tenho saudades mesmo é de quando eu falava asneira e alguém tentava me convencer do contrário me trazendo fatos academicamente comprovados. Nos dias de hoje, eu trato de fatos academicamente comprovados e tentam me convencer do contrário me trazendo asneiras.